CONTRADIÇÕES NA NAÇÃO DA MORAL E DOS BONS COSTUMES


    Pensei nas mais diversas formas de escrever uma matéria acerca desse assunto. Cheguei a escrever mais de quatro parágrafos, e apaguei alguns. E escrevi outros... No fim, arquivei o outro texto e iniciei esse acerca da mesma temática, das contradições que assolam o Brasil. Por um lado temos fundamentalistas que se prestam a ferir o estado democrático, e censuram a temática LGBTI, como na Bienal, ou no meio audiovisual. O argumento utilizado para tais atitudes é que eles querem defender as crianças de materiais inapropriados. Por outro lado, temos o avanço da necropolítica no Rio de Janeiro, a morte de pessoas nas comunidades, dentre elas crianças, e o silêncio daqueles que dizem defendê-las.

O estado brasileiro é extremamente curioso. Um laboratório perfeito para que as dualidades humanas sejam observadas. Comecemos pelo primeiro fato do parágrafo anterior, a censura a temática LGBTI. O atual presidente da república, Jair Bolsonaro, havia vetado os investimentos para as produções de materiais audiovisuais com temática LGBT. O discurso utilizado foi o clássico: "defender as pessoas, e as crianças, de ideologia de gênero".

Outro fato ocorrido só que dessa vez na capital do Rio de Janeiro, durante a bienal, foi quando o prefeito Marcelo Crivella tentou censurar um HQ da Marvel, por ter um beijo entre rapazes, e censurou os livros com temática LGBTI do evento. O argumento utilizado foi semelhante: "defender as crianças de materiais inadequados".

Ambos os políticos, ou melhor, politiqueiros, possuem um público protestante. Logo, eles veiculam os seus discursos de ódio livremente, e, para agradar os ouvidos daqueles que se intitulam "cristãos". O que soa estranho em toda essa conversa é o fato de que na Bíblia há a história de Davi e Jônatas. Naquela história, por mais que os mais conservadores tentem negar e tratar somente como amizade há o amor de dois rapazes. Um amor para além de uma amizade. E é engraçado o fato dessas pessoas, os fundamentalistas, esquecerem dessa história.

"O exemplo mais claro disso é o do amor entre Jônatas e Davi. Em diversas passagens o primeiro livro de Samuel sugere um profundo relacionamento emocional entre estes dois herois bíblicos." (Helminiak, 1998)

 

 

Este trecho da obra "O que a Bíblia realmente diz sobre a homossexualidade?", do sacerdote e teólogo Daniel A. Helminiak expõe a questão do amor entre os dois herois bíblicos.

"Teria o relacionamento entre Jônatas e Davi sido apenas uma profunda e fiel amizade? Talvez. Mas este relacionamento traça um importante paralelo com o de Gilgamesh e Enkidu, comumente considerado como homossexual, relatado ao antigo épico sumérico. Isto eqüivale a dizer que o relacionamento deles se encaixava no modelo dos nobres amantes militares, comum em todas as sociedades do antigo Oriente Médio, onde fica Israel. Os relacionamentos sexuais entre homens eram tidos como tão comuns que não atraíam atenção especial.  Além disso, até mesmo os ocidentais modernos devem perceber que há algo mais do que simples amizade na história de Jônatas e Davi." (Helminiak, 1998)

 

Ao ler o livro de Samuel na minha pré-adolescência, vi a parte sobre as duas figuras com muita felicidade. Posteriormente, quando li artigos de jornais tratando sobre o assunto, também fiquei satisfeito. Entretanto, ver alguém da Igreja contrariando uma visão dominante propagada pela Igreja detém um peso maior. Por isso, trouxe trechos da obra Helminiak, para expor  o quanto, por puro preconceito ou por ignorância, a visão dominante entre os fundamentalistas está errada. Há homossexuais na Bíblia, e que foram protagonistas.

"A carne mais barata do mercado é a carne negra

A carne mais barata do mercado é a carne negra

A carne mais barata do mercado é a carne negra

A carne mais barata do mercado é a carne negra

A carne mais barata do mercado é a carne negra

Que vai de graça pro presídio

E para debaixo do plástico

Que vai de graça pro subemprego

E pros hospitais psiquiátricos"

(Elza Soares, 2002)

 

Saindo da realidade homofóbica, tem-se os campos de concentrações modernos no Rio de Janeiro. Na gestão genocida do Wilson Witzel as pessoas das comunidades são abatidas. Nesse abate, disfarçado de luta contra o tráfico, seres humanos perdem suas vidas, e dentre eles, crianças. Apesar de toda a catástrofe, ainda há quem defenda fielmente a necropolítica presente no estado do Rio de Janeiro.

"O governador e o governo do estado lamentam profundamente todas essas morte. Essas e todas as outras que possam acontecer." (fonte: The Intercept)

 

Esse foi o discurso do secretário do governo do estado em questão. Observe a relativização, ou, a pouca importância dada à vida dos moradores das comunidades do Rio. Essas palavras foram proferidas no mês anterior, ou seja, antes da morte de Ágatha, que tinha apenas oito anos de idade.

O interessante em todo esse cenário, é que aquelas mesmas pessoas que pronunciavam a sua preocupação com as crianças, exaltam o seu silêncio para com as crianças vítimas do abate nas comunidades do Rio de Janeiro. A hipocrisia. Não há palavra que melhor defina a discordância presente no estado nacional. Hipocrisia.

De um lado temos uma suposta guerra contra o tráfico, que na prática se define enquanto uma política de extermínio. E do outro temos os tão conhecidos discursos moralistas, que falam "em nome da família e do cidadão de bem". Entretanto, quais famílias? Porque as famílias das periferias do Rio estão sendo destruídas, e não é um beijo entre rapazes que está causando isso.

Polícia treinada para matar não salva as pessoas, nem desconstroi o tráfico. Destroi famílias. 

 

 

 

Victor dos Anjos

Twitter e Instagram: @poesiadosanjos

 

Referências

 

<https://theintercept.com/2019/09/22/agatha-oito-criancas-vitimas-wilson-witzel-rio-de-janeiro/>  

<https://www.brasildefato.com.br/2019/04/19/necropolitica-banalidade-do-mal-e-estado-policial/> 

<https://oglobo.globo.com/opiniao/e-necropolitica-que-chama-23960866> 

<https://www.brasildefato.com.br/2019/10/07/cinema-sob-censura-e-cortes-de-verbas/>

<https://www.brasildefato.com.br/2019/09/10/dias-apos-censura-na-bienal-do-rio-parlamentares-criam-frente-em-defesa-do-livro/>

<https://brasil.elpais.com/brasil/2019/09/08/politica/1567961873_908783.html>

 

Livro: O que a Bíblia realmente diz sobre a homossexualidade?, Daniel A. Helminiak, 1998.

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